Ana de Londres | Cristina Carvalho
Ana deseja para si uma vida diferente, diferente da que conhece à sua mãe, esse não destino de ser dona de casa, mãe e esposa, submissa às ordens do marido. Deseja escapar ao risco que corre sempre que se esconde no patamar das escadas trocando beijos apaixonados. Deixará todo esse mundo ao partir para Londres e regressará, mas esse destino diferente que sonhou e um dia a fez partir, escapa-se-lhe, inalcançável.
Na festa de anos da Vera, os jovens dançam ao som dos Rolling Stone. O Vasco parte no próximo mês, está de partida e todos sabem para onde: para a guerra lá em África. Faziam-se homens os que tinham a sorte de regressar. A mãe entra sem reparar nos destroços do avião sobre a mesa e ainda que não disfarce, há muito deixou de ver. Lá longe existia uma guerra que os pais, no seu mundo imutável, pretendiam ignorar. Uma guerra de brincar onde se morria todos os dias “de acidente num jeep na curva de uma picada”. Eram jovens, deixavam-se enamorar pelas extensas planícies africanas. Era esse excesso de liberdade que os matava. Morriam longe e sem glória.
Ninguém parecia entender estes jovens, que tudo tinham e tudo abandonavam fugindo por essa Europa. Partiam sozinhos acossados pelo medo da guerra. Ana Maria segue esse fluxo, no seu caso, o destino é Londres. A mítica e distante cidade de Londres onde era possível ganhar dinheiro tomando conta dos filhos dos outros. Anos mais tarde, conserva ainda a água-de-colónia com um toque Londrino, num cheiro adocicado a pó-de-talco.
A Vera, na sala de estar da Ana Maria, assiste à transmissão da chegada dos homens à lua, espera que a máquina enviada da terra poise num local adequado de finas areias. Ana, no patamar das escadas, namorando, perderá esse momento. Uma caixa com três pés assenta no chão da lua, um homem sai, dá quatro ou cinco passos e espeta uma bandeira. Ana Maria não assiste a nada disso. O chão da lua é plano e vulgar. A mãe chega nesse momento, ainda assiste à chegada lunar. A Vera consegue salvar a amiga de ser apanhada com o namorado. Quando regressam as duas à sala, encontram a mãe fascinada com a transmissão. Para a mãe, que tudo viu, a superfície lunar continuava intocada e lisa, branca e fina. Quando a Ana partisse para Londres tudo isso deixaria de ser importante.
Este é o registo de mulheres sofridas, subjugadas à poeira conjugal, aos seus homens, autoritários e desinteressantes. Homens que só na loucura se transcendem.
O 12º capítulo abre e é Duarte o narrador. É a sua voz que escutamos, até o foco narrativo se fixar na Ana Maria, que deixa de ser referida como “a mãe” e passa a “Ana Maria”. É nesse momento que o narrador se transforma e toma a voz da amiga de infância da sua mãe, Vera, para, depois, encerrar o capítulo na voz da Ana Maria. Como se uma inquietude habitasse cada momento e reclamasse uma voz própria. Podia ser um erro, esta aparente inconstância do foco narrativo, mas não é, porque perfeitamente assumido, dissimulado com mestria e, talvez, com alguma maldade. Não damos por esta mudança de voz, presos que estamos ao fio da leitura. Se nos perguntassem pelo narrador, responderíamos que cada momento tem o seu. No fim do livro, mesmo no fim, escutamos a voz da autora. Mais do que fazer sentido, era importante que esse momento lhe pertencesse.
É como se todos estes personagens se encontrassem num local improvável, num futuro longínquo, e, a uma mesma voz, fossem reconstruindo a vida de Ana Maria, a Ana de Londres.
A escrita de Cristina Carvalho é acessível e plena de uma ressonância poética, talvez o leitor se depare com alguma simplicidade, uma simplicidade enganadora, bem diferente da que se encontra naqueles romances em que se percebem todas as palavras e todas as ideias do princípio ao fim. É nesse húmus que se encontra o desafio da sua leitura, o seu puro deleite, a sua recompensa. Ana Maria é a história desencontrada de todas as mulheres que um dia decidiram partir, partir pela sua felicidade e ficaram presas às mesmas regras de que fugiam, as únicas regras que conheciam; aturando maridos manhosos, perdoando aos homens que as traíram, acreditando que um dia o Sol seria o centro das suas vidas. A sempre estrela da vida.
O galo continuou sempre a cantar, não o primeiro galo que se conheceu nesta casa, mas um outro galo qualquer, não interessa, o que interessa é que se continuou a ouvir o galo a cantar.