Retrato de Rapaz by Mário Cláudio
Um jovem chega ao atelier de Leonardo da Vinci pela mão do pai que, farto das suas tropelias, o entrega ao mestre para que este faça dele um seu criado. O artista deixa-se seduzir pela beleza e pelo espírito irrequieto do rapaz a quem passa a chamar Salai.
Leonardo, o homem que sabia que tudo esperavam dele, exceptuando o comportamento normal, tem pelo seu discípulo eterno um carinho especial. A inclinação sexual, não sendo iludida, é aqui tratada com uma enorme delicadeza. Mesmo quando Salai é testado, num banquete na casa do comerciante Giacomo Andrea, a escrita mantém a elegância e o seu nível de erudição.
E só nesse instante, esclarecido pela calma com que o outro se abstraía do tempo, e do lugar, o miúdo deduziria que tudo quanto sucedera havia sido previamente combinado entre o artista e o negociante, contado e pesado e medido como no festim de Baltazar.
O autor resiste à tentação de um voyeurismo sobre o mito da homossexualidade de Leonardo, o seu amor pelo jovem acabará por amadurecer, assumindo uma expressão paternal:
Apanhando do chão um dos muitos ouriços, caídos do castanheiro, Leonardo abria-o com delicada cautela, e estendia o que nele se continha a esse jovem que, quando não o afrontava com os seus dislates, o escutava na doçura do silêncio.
Leonardo da Vinci, o próprio, ilustra este livro com uma profusão de desenhos. Regra geral, as ilustrações surgem para dar suporte à narrativa. Aqui, o autor usa-as como fonte de inspiração para os seus personagens. As três graças existiram no traço do grande mestre muito antes de ganharem vida na escrita de Mário Cláudio. A pesquisa, quando se trata de um dos maiores artistas de sempre, não podia deixar de lado os seus esboços. Aqui ganham vida e a sua história, iniciada a carvão, completa-se. São três Graças que surgem na dobra do tempo, como uma alucinação anunciando a grande noite que se aproxima e em breve reclamará o artista para sempre. Mário Cláudio invoca essa presença feminina tripla como uma alegoria do desnorte, tantas vezes caprichoso, em que caímos e nos rouba a paz nos últimos dias da nossa existência.
Este Leonardo, absolutamente credível por ação do talento e pela força da escrita de Mário Cláudio, revela-nos um lado perturbador e menos conhecido. No incómodo desse mistério, assombrando a vida de alguém que associamos à criação de tanta beleza, ciência e luz, reside o segredo deste livro.
E quando se tratava de suspender sobre uma paisagem de montanhas longínquas um inconsútil véu de neblina, logo ele (o discípulo) o transformava numa nuvem pardacenta, e ameaçadora de borrasca.
Sendo o seu mestre assíduo de cortes e das casas mais ricas, Salai com o seu comportamento rebelde permite ao autor deixar-nos um testemunho de uma época e de um artista cuja arte chega até nós com toda a sua força original. Leonardo, que assumia os sinais da Terra como reflexos da sua identidade, não podia deixar de se enamorar pela força rude e primitiva deste rapaz.