GnaisseGnaisse by Luís Carmelo

Tenho muitas vezes a sensação de que estou em todos os lados ao mesmo tempo. Outras vezes, tenho a sensação de que nada pode estar a acontecer onde eu não estiver…

Um professor, assediado pelos seus sonhos, perde-se entre a realidade e a obsessão. Apaixonado por uma aluna que desaparece, entra num vórtice narrativo em forma de oráculo. Quando no final surge a irmã, trazendo consigo o esboço de uma esperança, tudo se complica de novo, tendo a crise como pano de fundo. Temos de desaparecer para viver a nossa vida?

Ao leitor deste romance não assiste a sorte do louva-a-deus que é devorado pela fêmea após o ato sexual, para que na sua vida nunca mais haja tristeza. Fica irremediavelmente preso à beleza poética desta escrita, num fascínio palpável, feito de sons, texturas e muito saber literário. O registo é audaz e, por vezes, quando o tema menos o sugere, desce ao domínio do concreto e do físico: a chuva tinha transformado o dia num espesso aquário, para de seguida se soltar: Ela tinha a sinuosidade do instante (referindo-se à sua amada), a magia de um agora muito volátil. Os lábios ora apareciam largos como uma baía ora se deixavam moldar às formas de um dique.

Uma mestria exercida com maturidade, sem exibicionismos literários, mas que nunca deixará de nos surpreender: Uma berraria sem choro: a voz separada da sua seda, perdida, descontínua, como que a esboçar os altos picos de um baixo-relevo.

A ilustração da capa remete-nos para a nostalgia dos sons analógicos, registados em velhas fitas magnéticas onde, tantas vezes, se sobrepunham gravações antigas, trazendo-nos o eco de músicas distantes. Assim é esta escrita que, com o seu lado cíclico e labiríntico, regressa aos mesmos pontos, como um sonho recorrente: o momento em que voltou a fumar, o reflexo no vidro da porta da pastelaria, girafas a flutuar, Nietzsche, os círculos de Kandinsky, o ponto no centro do quadro, as caixas de bolacha e tantas outras referências, materiais e imateriais, que marcam a narrativa como prolepses. Mistérios que passam o testemunho entre si, como refere o autor na sinopse.

Neste caos cósmico, onde o protagonista parece soçobrar, nada pode ser dado como adquirido e, tal como um salmão se torna no avesso da corrente por onde corre, por todo o lado surgem sinais indicativos de uma visão: atingir as brechas, as falhas, os rombos de onde nascem os rios que atravessam a nossa vida e que vão desaguar no oceano.

O protagonista admite ter muitas vezes a sensação de estar em todos os lados ao mesmo tempo ou de que nada acontece sem a sua presença. Somos então o suporte de toda a realidade, a tela que se abre à escrita onde todos os devaneios são possíveis e, nesse ato, o narrador confunde-se com os labirintos do sonho

Por vezes, encarnava o sonâmbulo que me guiava o corpo como se fosse um salva-vidas, sem que eu tivesse a mais pequena ideia de que o mundo é uma lâmina que pode, de um momento para o outro, criar os seus náufragos.

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