O Dia em que Estaline Encontrou Picasso na BibliotecaO Dia em que Estaline Encontrou Picasso na Biblioteca by Alice Brito

Este romance é um olhar sobre duas cidades nos subúrbios do poder: Setúbal e Barcelona. Uma odisseia que atravessa o século XX até aos dias de hoje, pessoas simples a entornar as cidades na rua, exigindo dignidade nas suas vidas e no seu ganha-pão, sempre tão escasso. Cidades limite, alcovas de destinos inevitáveis. O romance abre com a jovem República portuguesa e os seus governos generosos em cacetada e avaros no pão que, com mão de ferro, travaram a luta dos operários, nas ruas e nas fábricas, matando a esperança numa vida melhor.

Em ambas as cidades existe um povo marcado pelo triângulo da fome, luta e repressão. Ao lado brando português, feito de muita repressão e medo, opõe-se o sangue ao rubro das várias nações de Espanha. Por vezes, como aconteceu em Barcelona, perdendo-se numa luta fratricida, em que as esquerdas se bateram entre si com a mesma raiva com que mais tarde, já enfraquecidas, teriam de enfrentar o exército de Franco. O espanto dos dias a praticar o assombro.

A mão pesada do fascismo caiu sobre a península ibérica. Fê-lo de forma desigual, em grau de intensidade diferente e ódios particulares. Em Portugal, onde tudo se pretendia pequenino e caladinho, vivendo numa semântica de diminutivos, ensaiou-se o conceito de um povo de brandos costumes. Outra foi a história em Espanha, bem mais brutal e facínora.

O fascismo ibérico foi o resultado do medo que a burguesia sentiu ao imaginar um mundo controlado por quem nuca tinha tido mundo nenhum. Em Espanha, envolveu o trabalho escravo dos vencidos e as purgas falangistas, os caçadores de vermelhos, que perseguiam e matavam tudo o que cheirasse a esquerdista. Até a geometria da fome era outra. A fome em Espanha era uma fome animal, de olhos febris, desesperada. Aqui, em Setúbal, era uma fome cansada, habitual e habituada. Não se poderá dizer que a fome portuguesa e, em particular, a fome setubalense fosse uma fome conformada, mas era seguramente uma fome cheia de experiência, uma fome pequena a rondar todos os dias.

Depois os comunistas tomaram conta da resistência operária. Estalinistas e irredutíveis, formataram, organizaram e acabaram com as liberdades próprias de uma revolução. Foram os grandes disciplinadores e impuseram o reinado da obediência: comer o que outros já haviam mastigado, era a prática. O fascismo, de certa forma, agradeceu.

Este é o tecido social em que se desenvolve a saga de David, Dulce e Nuno, sob a presença enigmática do avô Juan, em quem começa a história, exatamente no momento do seu nascimento. Na rua alguém ia preso, mais uma vez. Nunca mais se ouvirá falar dele.

Portugal vivia dias de sufoco, de tacanhice intelectual, com a quarta classe a ser considerada habilitação mais do que suficiente num país de analfabetismo generalizado. Em que o acesso ao liceu era já uma promoção social, um espaço de coabitação com as elites, o convívio com os filhos de famílias empanzinadas de estirpes finíssimas. A porta única de acesso a um emprego na Administração do Estado. Para os restantes era a fábrica do peixe, o emprego precário e mal pago, um excesso de horas de trabalho, a antecâmera do inferno. A fábrica era o grau mais baixo da escala social. Por que é que não secas, mar…, desabafa uma das operárias.

O fascismo, avesso à cultura e à educação ou a tudo o que ensinasse a pensar e a questionar, identificou-se facilmente com o lado marginal e rasca do fado que elegeu a canção nacional. Eram os valores do povo profundo, alicerce moral e anímico do novo homem português. O homem feito para viver habitualmente. O neoliberalismo dos dias de hoje, não se afasta muito desse registo. Coage-nos a não pensar, esmaga-nos com a mesma ladainha repetida por todo o lado, dos telejornais aos comentadores convidados, é o discurso da inevitabilidade do emprego precário e mal pago. Um ruído permanente a fazer-nos desistir de sonhar. A pior pilhagem que neoliberalismo fez foi a do pensamento.

Depois temos o narrador comprometido: sofre com o que vê, revolta-se, faltam-lhe palavras, tropeça em frases feitas, pragueja e usa de impropérios de um calão desbragado, sem nunca perder o registo literário da melhor qualidade. Por vezes, cala-se e pede emprestada a voz aos personagens, é a revolta em discurso direto, visceral.

Uma força narrativa imprime ao romance um ritmo vivo e empolgante, onde a realidade não pede licença para entrar e tomar conta da vida das pessoas. Já conhecíamos esta escrita em As Mulheres da Fonte Nova, o primeiro romance de Alice Brito. Aí, uma cidade mulher e madrasta era o centro da narrativa, assumindo o fardo que condição feminina arrasta consigo. Neste segundo romance, temos uma voz masculina, a de David, como uma espécie de alter-ego da consciência política da autora. Professor de história, é a mente iluminada, a ponte entre o passado e o presente político. O contraste com o analfabetismo histórico, político e cultural que mantem refém uma multidão de jovens apáticos e resignados com o seu destino, mais uma vez, inevitável.

E para quem aprecia uma boa história, com a sua dose de mistério, intriga, canalhice, triângulo amoroso e ação, não deixará de ficar saciado. Tudo servido por um narrador que se adapta a voz dos personagens para melhor lhes sentir a alma e que se detém, tão surpreendido quanto o leitor, com estas mulheres que, na sua aparente fragilidade, são a força motora deste romance.

Por isso, quando se ia embora, ficava sempre um bocadinho dela nos olhos de quem a via.

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