O Coro dos Defuntos by António Tavares
Diz ela, assim abre o narrador como o se as pessoas não fossem dadas a falar da vida dos outros e apenas um rumor anónimo perturbasse o remanso da privacidade de cada um. Aquele dizer, acarreta sempre um lado anónimo, uma desculpa que não magoa. Diz ela e segue-se uma ladainha que se desfaz num rosário de penas. Os que nasceram para obedecer não conhecem outra vida que não seja trabalhar, sofrer e confessar os seus pecados ao senhor prior; que mesmo quem não chega a ter uma vida, tem sempre muitos pecados a confessar.
Este romance decorre numa aldeia do interior de Portugal que permanece imune ao tempo, tão parada como eterna era a ordem das coisas e eterno era também o seu ditador, sempre a zelar por todos. Deu um tombo de uma cadeira, o velho ditador, e a vidente da aldeia, durante o sono, via crescer-lhe um cravo vermelho dentro da cabeça.
Diz o senhor prior que todos os homens são iguais sem contudo deixar de existir os que nasceram para pastorear e por isso merecem a proteção especial do bom Deus. São os que podem pedir obediência aos demais. O país inteiro, rural ou citadino, não conhecia outra homilia.
À aldeia chegavam os jornais e as notícias dos que, trabalhando na cidade, haviam visto mundo. No café instalou-se uma televisão que trazia novas realidades de uma sociedade em permanente transformação e que eram, de imediato, adaptadas à percepção da aldeia. As pessoas continuavam agarradas às crendices de sempre, às quais, a caixinha mágica, acrescentava novas a um ritmo nunca visto.
Continuavam a acreditar que um homem desaparecera dentro de uma pedra para aí viver. As aventuras dos americanos no espaço eram encaradas com a tranquilidade de quem sabe que o importante não era ir à Lua, mas sair da Terra. Era a sabedoria de um povo simples obrigado a emigrar para fugir à fome e à guerra do ultramar.
Neste romance, António Tavares revisita Aquilino Ribeiro. O vernáculo denso e em desuso regurgitado nestas frases, devolve-nos a ambiência de um tempo em que o país permanecia parado e eterno, tão eterno quanto o seu ditador. Sem comprometer a elegância da escrita, a narrativa flui permitindo ao leitor sobreviver no meio de tantos termos novos. No fim do livro existe um indispensável glossário.
Desde o Estado Novo até à instauração da democracia, o mundo rural português transbordou as suas fronteiras, sempre preso a um atavismo cultural, capaz de erguer um altar pagão ao que, não percebendo, o senhor prior também não soubesse explicar. Gente espinhosa como estojo, quase sempre, rasteira como o zimbro, afectuosa, às vezes, como a urze que dá cor ao mel. Era assim aquela aldeia isolada e pobre, perdida no meio de uma gigantesca cova. Em toda a sua extensão, Portugal em muito se lhe assemelha.
Falava como só uma feiticeira o podia fazer, juntando os elementos que tangiam as cordas dos deuses e dos astros.
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