Os Loucos da Rua Mazur | João Pinto Coelho
Algures, na Polónia, uma comunidade formada por judeus e cristãos vive uma coexistência amarga, ainda que pacifica. Dois miúdos, um cristão e outro judeu, aproximam-se e tornam-se amigos. A eles se juntará uma miúda, filha de uma bruxa; o elemento pagão a unir as duas religiões do Livro. O desejo e o pecado têm muito de negação do Deus que se professa. Shionka, a filha da bruxa, leva-os a espreitar os habitantes da aldeia, através das janelas das suas casas. Sendo muda de nascença, aquela é a sua forma de contar as histórias que conhece.
Já adultos, sobreviventes à invasão alemã – breve e ordeira-, a que se seguiu a ocupação soviética e as suas deportações reeducativas – a fim de libertar as pessoas dos excessos burgueses-, os dois homens voltam a encontrar-se. Celebram então um ritual evocativo de um tempo e uma mulher, Vivienne, preside a esse encontro, qual árbitro de desavenças antigas e dores ainda por expirar. Ela é o lado alheio às certezas que unem ou afastam aqueles dois homens. A atmosfera do livro respira por entre as pausas desse diálogo.
Um dos homens pretende escrever sobre o que se passou na Polónia e pede a ajuda ao amigo de então ou, tendo já tudo escrito, pretende encerrar o ciclo da eterna mulher que habitou entre os dois. Brinca às escondidas com os seus personagens, como se o que pretende revelar seja um desafio aquém da sua voz literária.
O mundo é um lugar propício a acudir aos aflitos da razão, como prometia a placa à entrada do manicómio de Pasternak. Um livreiro cego, uma mulher muda e um escritor, podem encerrar em si todos os mistérios do mundo. Como pode um cego reconhecer alguém se não for pela sua voz? Se dos livros só conhece o que as amantes lhe vão lendo em voz alta, o que pode adivinhar dos seus autores?
Quanto de Shionka, existe na voz de Vivienne? A eterna questão do que fazer da nossa memória, quando encontramos a nossa voz. Talvez por isso, dos três jovens que brincavam juntos e espreitavam as histórias dos outros à janela, um deles se tenha transformado num escritor, porque só em livro permanecem juntos para sempre.
Que eu saiba, um livro também serve para ajustar as contas.
Deverá estar ligado para publicar um comentário.