Coração Mais Que Perfeito | Sérgio Godinho

A estreia de Sérgio Godinho no género literário do romance remete-nos para o imaginário das mulheres que habitam o seu universo musical, do qual não se limita a invocar nomes que nos são familiares. São mulheres marcadas pela vida e que não se dão por vencidas. Vivem a condição feminina, imposta pela sociedade como o reflexo de uma fragilidade ou de uma fatalidade. Eugénia, a protagonista, tal como a mãe, passa pela experiência de um aborto clandestino; aparentemente, muitas mulheres passam pelo mesmo… é normal. Nesse momento, a escrita endurece, despe-se de pretensiosismo, de metáforas ou outro tipo de remissões literárias, apenas sobram mãe e filha e a dor que transborda da condição que lhes é comum.

 

E prosseguia:
«Lacerações cervicais, perfurações uterinas, febre, infecções, dores abdominais. É isto que me vai acontecer?»
«Eugénia! Vai correr tudo bem.»
«Já disse infecções?»
«Sim, já disseste. A senhora já vem aí relaxa.»
«Não consigo.»
Suspirava e olhava para o tecto
.

A mancha de texto serpenteia, libertando-se do narrador e da sua função de mediador; o drama, prestes a desenrolar-se, dispensa qualquer linha sobre a sua envolvência, trata-se de um ambiente comum, repetido em muitos quartos e na vida de muitas mulheres.  Frases curtas no ritmo certo de quem, perante uma plateia, narra um conto. A oralidade na escrita aporta os seus riscos, surge cheia de hesitações, intermitências e repetições que ultrapassam a mimetização com que a realidade se recria, uma e outra vez, nas mesmas situações. A voz do narrador não deve contentar-se em brilhar por fora, para usar uma frase do livro, deve sobrepor-se à sonoridade poética das palavras, sobretudo, quando pela sua força se anulam: chama contra chama; o sol nascente e o sol poente.

Neste livro estamos perante os abismos de quem nunca aprendeu a afundar-se. O amor da nossa vida, tantas vezes desaparecido, não se perde no pó se o podemos transformar num coração mais que perfeito.

Temos o trilho. Falta-nos o mapa.

Quetzal 2017.

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